domingo, 3 de fevereiro de 2008

Sobre o ato de ler - Parte 03

Texto III

Seria bom comprar livros se pudéssemos comprar também o tempo para lê-los, mas, em geral, se confunde a compra de livros com a apropriação de seu conteúdo. Esperar que alguém tenha retido tudo o que já leu é como esperar que carregue consigo tudo o que já comeu. Ele viveu de um fisicamente, do outro espiritualmente e assim se tornou o que é. Contudo, assim como o corpo assimila o que lhe é homogêneo, cada um de nós retém o que lhe interessa, ou seja, aquilo que convém a seu sistema de pensamentos ou a seus objetivos.

Todos, certamente, têm objetivos, mas poucos têm algo que se pareça a um sistema de pensamentos: daí não mostrarem nenhum interesse objetivo por nada e, em conseqüência, nada do que leram se fixa: não retêm nada de suas leituras. Repetitio est mater studiorum. Todo livro minimamente importante deveria ser lido de imediato duas vezes, em parte porque na segunda compreendemos melhor as coisas em seu conjunto e só entendemos bem o começo quando conhecemos o fim; em parte porque, para todos os efeitos, na segunda vez abordamos cada passagem com um ânimo e estado de espírito diferentes do que tínhamos na primeira, o que resulta em uma impressão diferente e é como se olhássemos um objeto sob uma outra luz.

As obras são a quintessência de um espírito: daí elas serem incomparavelmente mais ricas que o contato pessoal, mesmo quando se trata de um grande espírito, as obras acabam por substituí-lo na essência — e, inclusive, o superam largamente e o deixam para trás. Mesmo os escritos de um espírito medíocre podem ser instrutivos, dignos de leitura e agradáveis, precisamente porque são sua quintessência, o resultado, o fruto de todos os seus pensamentos e estudos; — enquanto a convivência com ele não consegue nos satisfazer. Daí que possamos ler livros de pessoas cuja convivência não nos agradaria e, assim, uma alta cultura espiritual nos leva pouco a pouco a encontrar entretenimento quase exclusivamente com livros e não mais com pessoas.

Não há maior deleite para o espírito que a leitura dos antigos clássicos: tão logo tomamos um deles, nem que seja por meia hora, nos sentimos refrescados, aliviados, purificados, elevados e fortalecidos; exatamente como se tivéssemos bebido de uma fresca fonte. Deve-se isto às línguas antigas e sua perfeição? Ou à grandeza dos espíritos cujas obras permaneceram incólumes e intactas por milhares de anos? Talvez a ambos os motivos. Se algo sei é que se, tal como agora se ameça, o estudo das línguas antigas fosse abandonado, surgiria uma literatura feita de escritos tão bárbaros, superficiais e sem valor, como nunca antes existiu; especialmente porque a língua alemã, que possui algumas das perfeições das línguas antigas, está sendo dilapidada entusiástica e metodicamente pelos escribas sem valor "do tempo de agora", de tal modo que ela, empobrecida e mutilada, pouco a pouco se transforme em um miserável jargão.

Textos de: Arthur Schopenhauer.

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu não gosto muito do Xopenrauer, mas devo admitir que este texto é bom.